III DOMINGO DA QUARESMA – ANO B




O  CULTO E A VIDA, ISTO É, O DECÁLOGO HOJE.


A Quaresma é tempo de conversão e de renovação. Mas não acontece renovação autêntica e concreta que não passe por um corajoso reexame da própria vida moral e da própria vida litúrgica; em palavras mais simples, dos próprios costumes e da própria oração.
A liturgia atrai hoje nossa atenção exatamente sobre esses dois importantíssimos aspectos da vida cristã. Trata-se de uma catequese muito prática, não coisas novas para aprender, mas coisas velhas para pôr em prática.
Comecemos pela segunda: a reforma da vida de culto ou litúrgica. Dela falou-nos o trecho evangélico: Jesus, certo dia, subiu ao templo de Jerusalém; lá encontrou gente que vendia, gritava, negociava, como normalmente ocorre nos mercados; então, tomou-se de indignação e, fazendo um açoite, não sabemos de quê, começou a botar por terra bancas e gaiolas de animais, gritando: “Tirai isto daqui e não façais da casa de meu Pai uma casa de negociantes”. Há quem tenha querido ver nesse episódio o início de uma revolta de caráter social e político liderado por Jesus. Mas sem razão. A importância do episódio (é um dos poucos relatados concordemente em todos os quatro Evangelhos) é inteiramente de ordem religiosa; está nas palavras (“Minha casa chamar-se-á Casa de Orações”, em Is 56,7), mais que no fato.
A purificação do templo é um gesto messiânico.  Vem indicar o início da era nova, escatológica, na qual finalmente são oferecidas a Deus “ofertas como convém” (MI 3,1ss) e se adora a Deus “em espírito e verdade” (Jo 4,23). Na discussão que se segue com os judeus, Jesus explicita em que consiste esse culto novo e qual é seu centro e seu lugar: “‘Destruí vós este templo, e eu o reerguerei em três dias’. [...] Mas ele falava do templo do seu corpo.” Jesus ressuscitado é o templo do novo culto. Toda oração e toda oferenda a Deus devem ser feitas, a partir de então, em Cristo Jesus, para que sejam um culto espiritual vivo santo e agradável a Deus (cf. Rm 12,1).
Há, porém uma segunda condição para que o culto do homem seja agradável a Deus: é que não seja hipócrita; que seja expressão de uma vida inteiramente orientada para Deus e obediente à Sua lei, não um momento separado do resto, um honrar a Deus com os lábios, mantendo o coração (e a vida) longe dEle: “De que me serve a mim a multidão das vossas vítimas? diz o Senhor. [...] De nada serve trazer oferendas [...] Não posso suportar a presença do crime na festa religiosa” (Is 1,11ss).
Sempre atenta a essas severas advertências da Escritura, a liturgia volta a nos propor, na primeira leitura de hoje, o Decálogo: não tomar o nome de Deus em vão; lembrar-se de santificar o dia de festa; honrar pai e mãe; não matar; não cometer adultério; não furtar; não prestar falso testemunho; não desejar os bens do próximo; não desejar a mulher do próximo.
Esses mandamentos foram o eixo da vida moral, primeiramente do povo hebreu, e a seguir do povo cristão. Não contêm toda a lei; sua forma negativa (não fazer) indica que se trata de alguns “sinais de fronteira” que mais delimitam um âmbito moral do que o descrevem positivamente (G. Von Rad). No seu interior estão contidos “toda a lei e os profetas” (Mt 22,40) e em particular o mandamento do amor, que os resume a todos. É exatamente esse caráter negativo que garante aos dez mandamentos a sua perene, inalterada atualidade.
De início eles sequer são percebidos como lei, mas como evento: o povo entra em aliança com Deus, e os mandamentos são o sinal de sua pertença a Javé, são a proclamação do seu caráter de povo eleito, diferente de todos, ou seja, santo. Daí decorre o fato, surpreendente para nós, de que Israel não fala da lei como de um peso ou de uma imposição, mas como de um dom grandioso, de um “facho que ilumina meus passos, uma luz em meu caminho” (Sl 118,105); fala deles com empolgação (como no salmo responsorial de hoje) e com orgulho sem limites: “Ditosos somos nós, Israel, porque a nós foi revelado o que agrada a Deus!” (Br 4,4).
O Decálogo é uma escolha de vida que Deus propõe ao homem: “Olha que hoje ponho diante de ti a vida com o bem, e a morte com o mal. Mando-te hoje que ame o Senhor, teu Deus, [...] observes seus mandamentos [...], para que vivas” (Dt 30,15s). O Decálogo é para o homem, não contra ele; não pretende amarrar ou limitar sua liberdade, antes, liberá-la. Aquilo que ele proíbe, de fato, não é algo de caprichoso que desagrada a Deus não se sabe por que, mas é aquilo que compromete antes de tudo o próprio homem e a sua possibilidade de ter relações equilibradas com os outros, de ser, em outras palavras, autenticamente homem. O repouso do sábado, por exemplo, é útil ao homem (para que não se reduza a uma besta de cargo) mais do que solicitado por Deus, e é solicitado por Deus exatamente porque é um bem para o homem.
O Decálogo é também “leigo” no sentido de que diz respeito às situações quotidianas, profanas, da vida: a família, as relações sociais, o trabalho, a vida sexual. Assume de fato a tarefa de autenticar o culto com a vida que ouvimos proclamar com tão fortes palavras de Deus.
A Palavra de Deus que até aqui procuramos explicar, interpela muitos pontos de nossa vida e se torna estímulo de renovação. Em primeiro lugar, no âmbito da compreensão ou da fé. A segunda leitura (“Nós pregamos Cristo crucificado [...], força de Deus e sabedoria de Deus”) faz-nos entender que tudo agora – inclusive a lei – assume sentido a partir de Jesus Cristo. Não estamos mais sozinhos diante da lei, gemendo como São Paulo pela nossa incapacidade de praticá-la (cf. Rm 7,7ss); entre nós e o Decálogo interpôs-se Jesus Cristo crucificado e ressuscitado. “Ele é a “sabedoria de Deus” para nós, isto é, a nossa lei: Agora, mortos para essa lei que nos mantinha sujeitos, dela nos temos libertado, e nosso serviço realiza-se conforme a renovação do Espírito” (V. 6). Essa lei do Espírito (entenda-se , do Espírito de Jesus) não é menos exigente que a antiga; é-o muito mais (“Tendes ouvido o que foi dito [...]. Eu, porém, vos digo...”, em Mt 5,38.39), mas é lei interior que não se limita a prescrever o bem: realiza-o conosco.
O outro ponto em que a Palavra de hoje interpela a vida, diz respeito ao nosso culto. Qual a relação que nosso culto mantém com nossa vida (entenda-se: a vida moral e a vida de santidade)? Porque, se nossas mãos guardam vestígios de sangue – ou de violência -, se não buscam a justiça e não socorre o oprimido, Deus repete também a nós o que dizia no Antigo Testamento: “De nada serve trazer oferendas.” [...] “Não posso suportar a presença do crime na festa religiosa”.
Se a nossa vida transcorre em meio a contínuos falsos testemunhos, isto é, mentiras e trapaças perante a sociedade (por exemplo, no recolhimento de impostos e de taxas), ante a lei, com os clientes no comércio, com os dependentes no trabalho, com os leitores no relato e no comentário dos fatos, Deus nos repete: “De nada serve trazer oferendas [...] Não posso suportar a presença do crime na festa religiosa”.
Se nossa vida sexual é tumultuada e desenfreada, se corre atrás de todo e qualquer desejo da carne, sem se deter sequer diante do adultério, Deus repete também a nós: “De nada serve trazer oferendas [...] Não posso suportar a presença do crime na festa religiosa”.
Eis como a Palavra de Deus se torna hoje ocasião de renovação quaresmal. Ela nos impele com força insólita a lavar-nos, a purificar-nos, a tirar o mal que há nas nossas ações (cf. Is 1,16); a botar fora o fermento velho, para ser uma massa nova e celebrar assim, dentro de pouco tempo, a festa do Senhor, com ázimos de sinceridade e de verdade (cf. I Cor 5,7s).

Raniero Cantalamessa, La Parola e la vita, anno B, Città Nuova (trad.)       

 
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