III DOMINGO DO TEMPO COMUM – B


 “O TEMPO É BREVE”: VIVER ESCATOLOGICAMENTE

O início do Evangelho de hoje coincide com o início absoluto da pregação de Jesus. Quando Jesus começou a pregar, as primeiras palavras que disse foram: “Completou-se o tempo e o Reino de Deus está próximo; fazei penitência [convertei-vos] e crede no Evangelho.”
    Nessa breve frase notam-se dois planos ou duas situações:

1)    Uma situação objetiva, independente do homem e que, ao contrário, condiciona externamente o homem: completou-se o tempo; os homens se encontram agora ante uma situação que inesperadamente se tornou diferente, como se numa brusca aceleração.
2)    Uma situação subjetiva, que depende do homem e de sua liberdade: converter-se e crer.

A mesma estrutura encontramos no texto de Paulo, na segunda leitura: “O tempo é breve [situação objetiva]. O que importa é que os que têm mulher vivam como se a não tivessem; [...] os que usam deste mundo, como se dele não usassem [situação subjetiva].”
Nesse esquema simplicíssimo está embutida toda a visão cristã da vida e do mundo, e nós não deixaremos que nos escape a oportunidade de imprimi-la em nosso coração Esse é um anúncio – o Evangelho -, e nós queremos acolhê-lo.
“Completou-se o tempo”, diz Jesus, e Paulo: “O tempo é breve.” Não há contradição, porque se fala de dois tempos diversos. Jesus fala do tempo da expectativa – da Sua primeira vinda – e diz que esse tempo se completou; o reino é aqui; é já possível entrar nele através da fé e da conversão! São Paulo fala do tempo para a realização final – da segunda vinda de Cristo – e diz que é breve. Esse tempo é o tempo da Igreja; é o novo “hoje” concedido aos homens por Deus, como espaço para que realizem nele a própria salvação mediante a fé (cf. Hb 4,7). Nós nos encontramos exatamente dentro desse tempo que se fez breve, cheio de urgência. A urgência não é apenas temporal, mas também espacial, isto é, nas coisas, no mundo que nos circunda; de fato, “a figura deste mundo passa”!
Jonas podia adiantar com precisão: “Daqui a quarenta dias...” (primeira leitura); nós não conhecemos nem o dia nem à hora (cf. Mt 25,13). Sabemos, porém, que a partir de agora pode ser qualquer dia e qualquer hora, porque estes em que vivemos são os últimos tempos (cf. Hb 1,1s; Gl 4,4; At 2,17; I Pd 1,20; I Jo 2,18).
A Palavra de Deus chama-nos hoje a uma dimensão essencial do viver cristão: a provisoriedade, o viver como peregrinos e forasteiros. Uma provisoriedade boa, isto é, de sinal positivo, não negativo; não se trata de fato de deixar a pátria, mas de entrar nela. O Novo Testamento tem uma palavra-chave para exprimir tudo isso: os crentes são aqui paroikoi, isto é, peregrinos (cf. I Pd 2,11); o tempo de sua vida é tempo de paroikia, isto é, de peregrinação (cf. 1,17). São os mesmos termos de que derivam “paroquianos” e “paróquia”, mas quem é que se recorda ainda de que esse é o significado original desses dois termos? Esses vocábulos nos recordam que o nosso viver é provisório, com o pé na estrada, com a pressa às costas, mas a boa pressa que se chama fervor, como a dos hebreus quando estavam para deixar o Egito (cf. Ex 12,11). “Não temos aqui cidade permanente, mas vamos em busca da futura” (Hb 13,14; cf. tb. Fl 3,20). Tal provisoriedade e tal falta de cidadania estável nos caracterizam com relação a este mundo e a esta cidade, não com relação à cidade de Deus que é Jerusalém celeste e, a partir de agora, a Igreja; diante desta tornamo-nos até concidadãos e familiares, de peregrinos e estrangeiros que antes éramos (cf. Ef 2,19).
Essa é a situação objetiva em que vivemos. Passemos agora à situação subjetiva, ou seja, à postura concreta que devemos assumir, em se tratando de uma questão de tempo breve. Diz o Evangelho: “Fazei penitência [convertei-vos] e crede no Evangelho!” Paulo desdobra essa grande palavra em algumas posturas mais concretas, dizendo: “Os que têm mulher vivam como se não a tivessem; os que choram, como se não chorassem.” Hoje, creio que devamos deter-nos no primeiro desses paradoxos: quem é casado viva como se não o fosse! É uma palavra forte, aparentemente contrastante com todas aquelas lindas coisas que, em outras circunstâncias, a Palavra de Deus nos disse sobre o matrimônio. Mas o contraste é só aparente. Esta nada mais faz do que desenvolver aquela outra palavra dita por Jesus aos saduceus, com relação à mulher que passara por sete matrimônios: “Os filhos deste mundo casam-se e dão-se em casamento, mas os que serão julgados dignos do século futuro e da ressurreição dos mortos não terão mulher nem marido” (Lc 20,34s). O matrimônio é uma forma boa de vida, desejada por Deus, mas provisória: está neste mundo e passa com ele. É insensato, portanto, fazer do matrimônio um pretexto para não viver como peregrinos, isto é, escatologicamente, a própria vida. E isso acontece. Entre as desculpas apresentadas pelos convidados para não participarem do banquete do reino, uma – diz Jesus – era esta: “Casai-me” (Lc 14,20). Tudo isso se repete infinitas vezes na vida: “Tenho mulher e filhos” torna-se com freqüência a desculpa para toda forma de avareza e de egoísmo, um pretexto para descartar qualquer risco e qualquer empenho na comunidade cristã.
É preciso viver escatologicamente também o próprio matrimônio! Isso significa: não apostar nele toda a própria vida; não fazer do matrimônio, dos filhos, da casa, um ídolo ao qual sacrificar tudo e todos. Aliás, esse é o melhor modo de torná-lo mais difícil. Submetido a expectativas exageradas e quase ilimitadas, o matrimônio não agüenta como nenhum empreendimento humano agüenta. Viver plenamente o próprio casamento em todas as suas dimensões, nenhuma excluída, mas vivê-lo como quem sabe que ele não é tudo, como quem sabe que se pode ter sucesso no próprio casamento e ser, apesar disso, um fracasso diante de Deus, ou vice-versa, falhar no próprio casamento e ter uma vida preciosa diante dos olhos de Deus, principalmente se resgatada pela aceitação da cruz.
Não são somente as virgens e os celibatários que devem na Igreja testemunhar a ressurreição, mas também os casados. “Quem crê que o corpo permanece para a ressurreição”, escrevia um antigo Padre da Igreja, “cuida desta veste da alma e não a emporcalha com a fornicação. Quem ao invés não crê na ressurreição, abandona-se à impureza, abusando do próprio corpo” (São Cirilo de Jerusalém, Cat. [Catequeses], 18,1.
Há modos de viver o matrimônio que não são conformes com a fé na ressurreição. Às vezes não são conformes nem mesmo com a dignidade da pessoa humana e destroem física e moralmente as pessoas. O mundo de hoje inventou até mesmo revistas destinadas aos casais, nas quais se faz propaganda de um modelo de vida matrimonial mais compatível com o paganismo do que com o cristianismo, e tudo isso, infelizmente, com suporte em teorias psicológicas e sociais altamente discutíveis; nelas se faz alarde da beleza e da juventude, porque o homem pagão, para se impor, tem necessidade de ser jovem e belo; nelas o mundo aparece inteira e somente ocupado por populações de jovens casais que não tem nenhum problema, a não ser os de ordem sentimental e sexual; de resto, reina nelas o mais desenfreado permissivismo. É a nova idolatria dos nossos dias: beleza, juventude, saúde e sucesso.
O cristão deve haurir na sua fé na ressurreição a força para aclarar e sublimar sua própria vida sexual durante o namoro e o casamento. “Saiba cada um”, advertia São Paulo, “possuir o corpo do próprio cônjuge com santidade e respeito, não como objeto de paixão e prazer, como os pagãos que não conhecem a Deus” (citação livre I Ts 4,4s); São Pedro acrescenta: “Vós, ó maridos, comportai-vos sabiamente no vosso convívio com as vossas mulheres [...]. Porquanto elas são herdeiras, com o mesmo direito que vós outros, da graça que dá a vida. Tratai-as com todo o respeito” ( I Pd 3,7).
Algum dia, na ressurreição, o vínculo que uniu em vida um homem e uma mulher não será truncado nem esquecido (como não será truncado nem esquecido o vínculo que uniu, no tempo, Cristo e a Igreja), mas será espiritualizado, será um vínculo de perfeito amor e fidelidade dos sinais do amor físico que se trocava em vida. As verdadeiras e perfeitas núpcias acontecerão somente no céu, entre os filhos da ressurreição.
Estou certo de que muitos namorados e esposos cristãos poderão encontrar nesse pensamento força para afrontar, já desde agora, situações difíceis de castidade, sem por isso perder o encanto do próprio casamento e fazê-lo andar à deriva, antes, crescendo em um amor mais espiritual e mais profundo. Irmãos – dizemos também a eles -, o tempo se tornou breve; comportem-se honestamente entre vocês, “como em pleno dia” (Rm 13,13). Porque este é o pleno dia, é o “hoje” que nos é dado por Deus para entrarmos no Seu repouso (cf. Hb 4,7s) e que não devemos deixar que se perdesse.
Agora a Eucaristia nos espera. É o momento em que a escatologia cristã se faz presença. Nela recebemos um penhor da ressurreição futura: “Quem come a minha carne e bebe o meu sangue tem a vida eterna; e eu o ressuscitarei no último dia” (Jo 6,54).



                                                   Raniero Cantalamessa, La Parola e la vita, anno B, Città Nuova (trad.)     

 
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