CONVERSÃO: POR QUEM OS SINOS DOBRAM?
“Depois que João foi preso, Jesus dirigiu-se para a Galileia. Pregava o Evangelho de Deus, e dizia: ‘Completou-se o tempo e o Reino de Deus está próximo; fazei penitência [convertei-vos] e crede no Evangelho. ’” Devemos hoje concentrar toda a nossa atenção nessas poucas linhas do texto evangélico. No início da Quaresma, a liturgia nos proclama o início do Evangelho (nessas palavras está o eco da primeiríssima pregação de Jesus!), como que a convidar-nos que nos coloquemos de novo no seguimento de Cristo como se fosse a primeira vez, que nos deixemos reevangelizar do começo.
No topo do Evangelho está – como acabamos de ouvir – a solene e austera palavra: conversão. A Bíblia narra as vicissitudes do profeta Jonas, que é mandado por Deus a pregar a conversão na grande e corrupta cidade de Nínive. Antes de ir, porém, o profeta tenta fugir por mar, tanto o aterroriza o empreendimento de pregar a conversão a uma metrópole no auge de sua opulência e descomprometimento. É o mesmo pensamento de desencorajamento que assalta hoje a quem prega o Evangelho. A tentação é forte neste momento histórico: estamos atravessando tempos inquietos; o povo já está saturado de pensamentos graves e de medos por sua própria conta, e o carnaval não foi por certo o bastante para dissipá-los. Se fosse por nós, selecionaríamos para todos os domingos aquela leitura de Isaías que começa dizendo: “‘Consolai, consolai Meu povo’, diz vosso Deus. ‘Falai ao coração deste povo e dizei-lhe: Coragem acabou a tua escravidão’” (citação livre de Is 40,1). Ao invés, abrimos o Evangelho de hoje e que lemos aí? “Completou-se o tempo e o Reino de Deus está próximo; fazei penitência e crede no Evangelho.” Portanto, para nós também, como para os ninivitas: penitência, conversão! Temos que nos resignar a ouvir periodicamente, no início de cada ciclo litúrgico, essa palavra. Hoje, porém, queremos aproveitar a ocasião para ir ao fundo da questão e ver o que significa, na realidade, essa Palavra com a qual Jesus começou a falar aos homens.
Por trás da palavra vernácula “conversão”, está quase sempre, no Novo Testamento, a palavra grega metanoia: uma palavra que, traduzida, significa “revolução mental”. Pode-se ficar surpreso com essa tradução, mas é a tradução literal: meta é preposição que indica “inversão de movimento”, “subversão”, “emborcamento”; noia é um substantivo e significa “mente”.
Também o Evangelho, portanto, conhece e prega uma revolução. Mas revolução de quê? Hoje fala-se muito de revolução; por algum tempo esteve em voga a ideia de uma revolução social ou proletária; depois foi a vez da revolução cultural: agora, coisa estranha, parece que a revolução mais importante passou a ser a revolução sexual ou dos costumes. Tais revoluções têm uma coisa em comum: são todas contra alguma coisa e contra os outros – a outra classe, o outro sexo -; em qualquer caso, contra algo de externo ao homem ou suposto como tal: as estruturas, as coisas, os costumes (visto que é contra os costumes da sociedade que se reage, não contra os próprios!).
A revolução evangélica é diferente por duas razões fundamentais: é uma revolução primeiramente interior (da mente) e é uma revolução contra si mesmo. É realmente – como dizia João Batista – pôr o machado da raiz (cf. Mt 3,10). E na raiz da própria árvore, não na do vizinho! Porque a raiz de todos os males está ali, no homem, na sua liberdade doente. É a partir de dentro, ou seja, do coração do homem – dizia Jesus – “que procedem aos maus pensamentos: devassidões, roubos, assassinatos, adultérios, cobiças, perversidades, fraudes, desonestidade” (Mc 7,21s). E São Tiago reforça, dizendo: “Donde vêm as lutas e as contendas [hoje poder-se-ia acrescentar: a injustiça, o ódio, a violência] entre vós? Não vêm elas de vossas paixões, que combatem em vossos membros?” (4,1). Qualquer revolução que não comece por aqui, mas que busque somente abalar as estruturas, é uma pseudo-revolução que deixa as coisas, ou as faz depressa voltar a ficar, no mesmo ponto em que estavam; é nadar em círculos; é lutar, como um dom Quixote, contra moinhos de vento.
A quem o Evangelho de hoje chama à conversão? Por quem os sinos dobram? – seria de se perguntar com a conhecida frase. Dobram por nós, cristãos! O julgamento deve começar pela casa de Deus (cf. I Pd 4,17). No Antigo Testamento, nos momentos de crise e de calamidade nacional, quando todos desabafavam lamentos e maldições contra os povos vizinhos que oprimiam Israel, surgiam muitas vezes os profetas e voltavam o discurso contra o próprio Israel: “Foste tu”, diziam, “que pecaste; é por tua causa que tudo isso aconteceu: és tu que te deves converter”. E exortavam: “Voltemo-nos de todo o coração ao Senhor, com jejuns, lágrimas e gemidos de luto; quem sabe não mudará Ele e se aplacará, e voltará a nos dar a Sua bênção?” (citação livre de Jl 2,12ss). A lamentação se transforma em confissão, como acontece no livro do profeta Baruc, que diz: “O Senhor nosso Deus é justo. Nós é que hoje devemos corar de pejo, assim como nossos pais. Aconteceram todas as calamidades de que nos ameaçara o Senhor. E nós não (tentamos) abrandar a cólera do Senhor contra nós, renunciando aos pensamentos perversos de nosso coração” (2,6ss).
Também no tempo de Jesus, todos esperavam que o Messias, ao vir, pregasse a guerra santa contra os pagãos; ao invés, Ele declarou ter vindo para chamar à penitência as “ovelhas perdidas da casa de Israel” (Mt 15,24). Em lugar de gritar: “Ai de vós, estrangeiros, que ocupais a Palestina”, Ele gritou: “Ai de vós, escribas e fariseus hipócritas!” (Mt 23,14); “Ai de ti, Corozaim! Ai de ti, Betsaida!” ( Mt 11,21). Frente a frente com o convite à conversão, não há desculpa que valha; de nada serviu aos hebreus dizer: “Somos filhos de Abraão!” (citação livre de Mt 3,9) e tampouco nos vale dizer: “Somos filhos da Igreja!” (subentenda-se: a conversão é para os outros, não para nós).
Se for por nós que os sinos dobram neste início de Quaresma, que nos cabe fazer? É a pergunta que surge espontânea tão logo se acolhe o convite à conversão; formulou-a Paulo quando estava caído do cavalo; dirigiram-na aos apóstolos os primeiros ouvintes da boa-nova: “Que devemos fazer irmãos?” (At 2,37).
Afortunadamente, Jesus não nos deixa às escuras a respeito; não nos diz apenas o que devemos botar abaixo (como de costume fazem os revolucionários ao nosso redor), mas também o que devemos construir; ou seja, não só do que nos devemos converter, mas também a que nos convertermos: “Convertei-vos e crede no Evangelho” (citação livre de Mc 1,15). Tudo está enfeixado nessa frase cheia de sentido. Crer no Evangelho significa acolher a boa-nova, ou – como dizia o mesmo Jesus – acolher o reino, e acolhê-lo como uma criança (cf. Mc 10,15); vale dizer, como uma criança acolhe a vida que lhe é dada e nela mergulha sem discuti-la, com simplicidade, com entusiasmo e alegria: “Se não vos transformardes e vos tornardes como criancinhas, não entrareis no Reino dos céus” (Mt 18,3). Converter-se significa, então, em certo sentido, fazer-se pequeno e simples (entenda-se, com relação à falsa grandeza e à falsa sabedoria); estar disposto a perder tudo, desistir de sentir-se no centro do universo com todos os outros obrigados a girar em torno de nós. Converter-se – já foi dito com profunda verdade – é descentrar-se de si mesmo para voltar a centrar-se em Deus (Teilhard de Chardin), isto é, colocar Deus e o Seu reino naquele centro de convergência de pensamentos e de intenções que é usualmente ocupado pelo nosso teimoso “eu”.
Apenas num segundo momento é que crer no Evangelho significa outras coisas mais específicas e mais práticas, como crer na doutrina e nos valores que ele exprime (por exemplo, nas bem-aventuranças); basear nele os próprios juízos e as próprias escolhas; imitar Jesus Cristo, amar, perdoar, etc.
O Evangelho nos oferece toda uma série de exemplos concretos de conversão, em algum dos quais é talvez possível reconhecer o nosso caso. Que significou, por exemplo, para Zaqueu, o publicano, converter-se e crer no Evangelho, e que pode significar para quem se encontra hoje nas mesmas condições (empresários, administradores públicos, gente que maneja dinheiro próprio ou alheio)? “Se tiver defraudado alguém, restitui o quádruplo” (Lc 19,8): significa colocar-se em dia com as exigências da justiça, deixar de explorar o próximo e reparar, se necessário, as injustiças cometidas, sem se iludir com poder encontrar a salvação em outras coisas, contornando o obstáculo, ainda que fosse fazendo esmola e beneficência.
Que significou converter-se e crer no Evangelho para a pecadora que foi procurar Jesus na casa de Simão (cf. Lc 7,36ss)? Significou chorar aos pés de Jesus, começar a amar de um modo diferente, mudar de vida. As mesmas coisas que Cristo pede hoje a quem está na mesma situação, homens e mulheres, indistintamente! E não é preciso que se trate de pecadoras ou de pecadores públicos! A quem mantém escondida uma vida desonesta, recorrendo a mil subterfúgios para conservar ao mesmo tempo pecado e bom nome; a quem enche a própria vida de pecados carnais; a quem macula o próprio matrimônio com infidelidade, Jesus pede a mesma coisa: arrependimento e decisão de não mais pecar.
Que significou para Saulo de Tarso converter-se e crer no Evangelho? Significou a carreira de erudito, os projetos humanos e religiosos, as ambições e as companhias de outrora; significou fazer-se estulto por amor de Cristo, deixando-se apanhar por Ele sem mais recalcitrar.
Na liturgia das Cinzas, com que há alguns dias se inaugurou o caminho quaresmal, a Igreja nos dirigiu insistentes convites, que não devemos deixar cair no vazio: “Em nome de Cristo vos rogamos: reconciliai-vos com Deus!” (II Cor 5,20), dizia-nos com Paulo. “Hoje, se ouvirdes a sua voz, não endureçais os vossos corações” (Hb 3,7s; Sl 94,7-8). O sino que hoje dobra para nos chamar à conversão dobrará amanhã para chamar outros para a nossa despedida deste mundo. Não aconteça que o dia da morte nos surpreenda de improviso e nós, tomados de medo, busquemos angustiadamente um espaço de penitência, outra Quaresma que seja, ou mais uma semana, e não o encontremos.
Não estamos sozinhos neste esforço: Cristo vem conosco ao deserto para lutar contra o mal que há dentro de nós; Ele, disse-nos Pedro na segunda leitura, “morreu uma vez pelos nossos pecados – o Justo pelos injustos – para conduzir a Deus”, isto é, para tornar possível a nossa conversão.
Raniero Cantalamessa, La Parola e la vita, anno B, Città Nuova (trad.)