EVANGELIZAÇÃO E PROMOÇÃO HUMANA
Antes de qualquer coisa, façamos uma rápida passagem sobre as três leituras de hoje. A primeira fez-nos ouvir um trecho da lamentação de Jó; poderíamos intitulá-lo: a miséria da condição humana. “A vida do homem sobre a terra”, diz, “é uma luta, [...] meus dias passam mais depressa do que a lançadeira, e se desvanecem sem deixar esperança. Minha vida não é mais do que um sopro”. Há outras definições pessimistas do homem (Pascal: “O homem é um caniço”; Calderón de la Barca: “A vida é um sonho”); mas essa, de Jó, supera todas: “um sopro” é algo que apenas emitido se dispersa sem deixar traços, caracterizam-no a inconsistência e a brevidade.
Este tema da mísera existência do homem volta a aflorar de algum modo, no texto evangélico, não porém sob a forma de reflexão, mas sob a forma de realidades concretas e empíricas. Encontramos aí uma espécie de amostragem daquelas coisas que pode o homem sofrer, fazendo sua existência, como dizia Jó, semelhante à de um escravo. Sobretudo as doenças: fala-se ali de febre e de toda sorte de doenças, e ademais, daquele mal obscuro, mais terrível que todos, que é, para o Evangelho, a possessão diabólica. O texto evangélico de hoje é unanimemente reconhecido como uma fiel prestação de contas (colhida de viva voz por Pedro, na casa de quem certos fatos, em parte, se desenrolam) de um dia-dia de Jesus, durante o Seu primeiro ministério na Galileia. Daí deduziu que a jornada de Jesus consistia, normalmente, num entrelaçado de cura de doentes, oração e pregação do reino. O texto evangélico, de fato, não nos fala só das curas realizadas por Jesus, mas também da Sua oração antes do amanhecer, em lugar solitário, e da Sua pregação pelas aldeias ao redor. Usando de palavras que a nós se tornaram familiares, poderemos dizer que este Evangelho nos fala de evangelização e promoção humana.
A segunda leitura, de São Paulo, se insere nesse ponto como vigoroso desenvolvimento do tema da evangelização: “Ai de mim, se eu não anunciar o Evangelho!”
É uma ocasião que a liturgia nos oferece (não sei se intencionalmente ou não) para refletirmos sobre o tema – que há algum tempo se tornou tão vital para os cristãos – da evangelização e promoção humana, mas refletindo nele como convém a uma assembleia eucarística, isto é, em atitude de escuta e de anúncio da Palavra de Deus, mais que de doutas análises e discussões.
O ponto de onde se pode partir é exatamente o da experiência que Jó sentidamente nos relembra: a vida do homem sobre a terra é uma dura labuta; é uma batalha; no exterior e no próprio corpo, doenças, dores, fome, morte; no interior, o desencorajamento que pode chegar até ao ponto de amaldiçoar o dia do próprio nascimento (cf. Jó 3,3ss). Essa situação não é desejada por Deus; não é original. O que o homem deveria ser, segundo o plano original de Deus, é bem outra coisa: é o homem feito pouco inferior aos anjos, coroado de glória e de honra, ao qual tudo está sujeito no céu, nas águas do oceano e em toda a terra (cf. Sl 8,6ss).
Por que então esse abismo entre o nosso “dever ser” e o nosso “ser”? A Bíblia responde: o pecado! Essa resposta não está em choque com aquela que nos dá a crítica social, a qual nos habituou a ver, em muitos dos males que afligem a convivência humana, os efeitos da apropriação injusta, da opressão dos pobres, da exploração dos mais fracos, da falta de igual distribuição dos bens, e dos serviços, mais que efeitos de um remoto pecado original. Não está em choque, porque tais coisas, para nós, cristãos, derivam exatamente do pecado e é pecado.
Se a salvação do homem consistisse em um simples voltar atrás, à condição paradisíaca, bastaria eliminar do mundo o suor e a dor, com tudo aquilo que essas palavras implicam; em outros termos, bastaria a promoção humana. E, de fato, quantos projetos de elevação do homem vão nessa direção, especialmente os que prescindem de Deus! O homem - diz-se – na origem, era bom e são; a sociedade, criando desigualdades entre homem e homem, tornou-o mau ou escravo, isto é, opressor ou oprimido, mas, em ambos os casos, infeliz. A salvação, portanto, estaria “atrás”, no destruir as superestruturas e voltar ao estado de igualdade original, na igualdade dos direitos (Rousseau) ou na igualdade dos bens de consumo (Marx).
Mas para o crente a salvação está “adiante”, não atrás. Não consiste no reentrar no paraíso perdido, mas no entrar no reino de Deus anunciado por Cristo; não é uma retomada do antigo e do natural, mas uma renovação para melhor. De súbito, a promoção humana adquire para nós um significado completamente diferente: está em função do reino; é “preparação evangélica”, isto é, um elevar o homem e para que se torne apto a entrar no reino de Deus (cf. Lc 9,62). Não se pode sustentar, portanto, sem a evangelização. Ademais, é um construir, indiretamente, o próprio reino de Deus, porque, como a graça supõe a natureza, assim também a realização do reino supõe a realização humana; os “novos céus” e a “nova terra” estão em nexo íntimo com esta terra e com estes céus, ainda que nos escape a natureza precisa desse nexo. O esforço pela promoção humana deve preparar “a matéria do reino celestial” (Gaudium et Spes,n. 38). Assim, a redenção coroa – não anula – a criação.
Poderemos ver refletido esse nexo entre promoção humana e evangelização na própria narração evangélica de hoje, como, de resto, em tantas outras páginas evangélicas: Jesus cura os enfermos e, simultaneamente, prega o reino; multiplica o pão material e promete o pão do céu (cf. Jo 6); promove evangelizando e evangeliza promovendo. A salvação relativa à doença e à fome é premissa e sinal da salvação mais profunda e total que se realiza no crer no Evangelho. O Evangelho emprega o mesmo verbo (sozo), seja para indicar a cura do corpo (o curar), seja para indicar a libertação da alma (o salvar). Cristo – e somente Ele – pode tornar o homem “são e salvo”. Nesta vida, de forma progressiva, como sinal, promessa e esperança (cf. Rm 8,24: spe salvati [salvos pela esperança] ); na vida eterna, de modo pleno e definitivo.
O tema “evangelização e promoção humana” não se esgota no traçar, de modo estático, sua relação recíproca. Trata-se de ver o que, dinamicamente, com relação à prática, uma coisa significa para a outra: em particular, o que o Evangelho significa para a promoção humana e o agir de Cristo para o agir da Igreja. “A obra redentora de Cristo, que consiste essencialmente na salvação dos homens, inclui também a instauração da ordem temporal. Portanto, a missão da Igreja não consiste só em levar aos homens a mensagem de Cristo e Sua graça, senão também em penetrar do espírito evangélico as realidades temporais e aperfeiçoá-las” (Apostolicam Actuositatem, n. 5).
De dois modos a evangelização – isto é, o anúncio da aproximação do reino de Deus – pode agir como fermento para melhorar as estruturas sociais e a qualidade da vida humana: a) mediante uma crítica radical; b) mediante um imperativo radical.
Com a primeira, o Evangelho – por exemplo, o Evangelho das bem-aventuranças – põe em cheque qualquer ajuste político e social do mundo, desmascarando as injustiças e convencendo o mundo do pecado (cf. Jo 16,8), e isso não só de modo genérico, mas também em pontos concretos atinentes às relações humanas. Com o imperativo radical – que se identifica, na prática, com o “amarás o teu próximo como a ti mesmo” (Mc 12,31) – apresenta um princípio absolutamente radical que, à luz do novo significado da palavra “próximo” (cf. parábola do samaritano: Lc 10,25-37), se resolve sempre em favor do mais necessitado e, portanto, em favor da igualdade e da solidariedade humana.
Sobre esse imperativo se fundamente a grande parte da atualidade e da universalidade do Evangelho para fins da promoção humana. O amor do próximo não está ligado a um tipo particular de realização histórica. Se no passado, num certo contexto social, ele se traduziu em beneficência, em assistência ou em partilha espontânea dos bens (o exercício da caridade), isso não quer dizer que seja essa a única realização histórica possível do Evangelho. Hoje, poderia ele dar lugar a formas diversas de promoção humana, mais adequadas à compreensão que temos dos mecanismos socioeconômicos, de forma a nos permitir atacar pela raiz o próprio gerador de tantos males sociais, que é o egoísmo com sua lógica do mais forte.
O movente social do Evangelho não é a esmola em si (como o é, por exemplo, para o Alcorão), mas o amor do próximo e, como tal, é um movente radical, sempre atual. Aplicá-lo significa, a cada vez, fazer promoção humana autêntica não só no confronto de quem recebe, mas também no de quem dá, porque se é mais homem na medida em que se ajudam os outros a sê-lo.
O Concílio dirige de modo particular aos leigos o discurso sobre a promoção humana (cf. Decreto Apostolicam Actuositatem, sobre o Apostolado dos Leigos) e ao clero o da evangelização.
Mas deve existir um ponto de encontro, em que a promoção humana feita pelo leigo se torna, pelo seu testemunho de fé, anúncio do reino, e o anúncio do reino feito pelos sacerdotes se torna promoção humana (Paulo, na segunda leitura: anunciar gratuitamente o Evangelho fazer-se fraco com os fracos e pobre com os pobres!).
Que esperamos obter com este nosso esforço evangélico pela promoção humana? Por acaso a vida do homem sobre a terra deixou de ser “uma luta” e “um sopro”, mas é, como se costuma dizer, uma “cocanha”? Não!
Queremos apenas testemunhar que “a vida já não se destina a ser um peso para muitos e uma festa para uns poucos, mas para todo um emprego, do qual cada um prestará contas” (A. Manzoni, I Promessi Sposi [os noivos], c. 22).
De resto, não esqueçamos que no Evangelho está escrito também – e a antífona da comunhão desta missa o relembra: “Bem-aventurados os que choram, porque serão consolados!” (Mt 5,4).
Raniero Cantalamessa, La Parola e la vita, anno B, Città Nuova (trad.)