VI DOMINGO DO TEMPO COMUM – ANO B







                                            “SE QUERES, PODES LIMPAR-ME”    

                Há um notável contraste entre as duas cenas descritas, respectivamente, pela primeira leitura e pelo Evangelho. Na primeira leitura, vimos como se comportava, ante um desventurado vitimado pela lepra, a lei de Moisés. São prescrições que assustam: o infeliz deve afastar-se da sociedade, viver “fora do acampamento” e gritar: “Impuro!”, para que ninguém se aproxime dele; a sociedade se defende do leproso, em lugar de ajudá-lo. Na leitura evangélica, vemos como se comporta Jesus, diante de um leproso: comove-se, estende a mão, toca-o, cura-o. Isso, num tempo em que se estava convencido de que tocar um leproso significava entregar-se a contágio certo, à contaminação; significava imundo com o imundo e excluir-se até mesmo do culto de Deus.
                A postura, aparentemente impiedosa, da lei de Moisés está inspirada na preocupação com a santidade de Deus e do Seu povo; nada de impuro e de corrupto deve contaminar essa santidade; tudo aquilo que se atém à morte, deve ser mantido distante do Deus da vida. E a lepra é, por antonomásia, corrupção, impureza, princípio de dissolução e de morte. Trata-se de um conceito de santidade que tem como elemento principal a pureza externa e ritual; antes da enérgica reação dos profetas, ela é mais um fato de higiene que de consciência. Jesus inverte exatamente esse conceito de santidade e de pureza, retornando essas coisas à sua verdadeira raiz, que é a intenção do homem: não é o que o homem toca, não é o que entra nele, não são as mãos sujas que mancham o homem, mas aquilo que o homem pensa aquilo que sai do seu coração (cf. Mt 15,11ss).
                No momento em que, historicamente, acontece o episódio narrado no Evangelho de hoje, tudo o que os discípulos entenderam dele foi que Jesus Cristo era um taumaturgo (o episódio ocorre em meio a uma intensa atividade de curas operadas por Jesus), ou que Ele era o Messias, já que a cura de leprosos era um dos sinais da chegada da era messiânica (cf. Mt 11,5). Mas o que mais os impressionou foi, em todo o caso, a popularidade que se fez em torno de Jesus; Ele não pode mais entrar publicamente em uma cidade, tamanho é o entusiasmo das multidões, a despeito do Seu esforço de manter, junto às multidões, o Seu segredo messiânico.
                Quando, porém, mais tarde, depois da morte e ressurreição de Jesus, o evangelista Marcos lançava por escrito essa narração, a comunidade estava à altura de ler aí um ensinamento mais profundo e mais espiritual. Isso se depreende também da colocação do episódio: no Evangelho de Marcos, está situado entre uma série de episódios que falam do poder de cura de Jesus (1,29-38), e o episódio do paralítico, no qual se fala do perdão dos pecados concedido por Jesus (2,1-12). Esse ensinamento espiritual e universal encontra-se contido entre dois limites: por um lado o homem que grita a Cristo: “Se queres, podes limpar-me”, e do outro, Jesus que responde ao homem: “Eu quero, sê curado”.
                Assim tomado, o episódio não diz respeito somente a certo leproso que, certo dia, num recanto da Galileia, encontrou Jesus, mas a toda a Igreja e a cada um de nós. Nós somos, ou devemos ser aquele leproso que grita a Jesus: “Se queres, podes limpar-me!” Por quê? Somos talvez também nós leprosos, imundos, necessitados de cura? O Evangelho de hoje quer persuadir-nos precisamente dessa dura e desagradável verdade.
                Para os homens do Antigo Testamento e do tempo de Jesus, a lepra era intimamente ligada à ideia de pecado, era considerada como que uma projeção externa dele, seu sinal e consequência. Que pode fazer a lei contra o pecado? Nada, diz Paulo! Pode somente revelá-lo e imputá-lo, mas não o pode tirar (cf. Rm 7). Eis porque a lei mosaica se limitava a cadastrar o leproso, a afastá-lo da comunidade e pronto. Na parábola do bom samaritano, ela – a lei mosaica – é simbolizada pelo levita que passa ao lado do moribundo, pela estrada que leva de Jerusalém a Jericó: vê-o e passa adiante (cf. Lc 10,32).
                Mas Jesus supera a lei com a misericórdia: a lei foi dada por meio de Moisés, mas por meio de Cristo veio a graça (cf. Jo 1,17). Ele cura a lepra, isto é, perdoa os pecados e cura o homem: é o bom samaritano que não passa ao largo do ferido, mas se detém, compadece-se dele, carrega-o sobre seu jumento e assume seus cuidados (cf. Lc 10,34ss). É bem outra coisa!
                Jesus é ainda hoje esse bom samaritano; é ainda hoje aquele que diz: “Eu quero, sê curado!” Isso sentia a comunidade primitiva, que nos repassou a narrativa de hoje: Jesus salva do mal, e salva tomando “sobre si todas as nossas fraquezas e [...] os nossos sofrimentos” (Is 53,4; cf. Mt 8,17; I Pd 2,24; I Jo 3,5). Ele salva, por vezes, também do mal físico e da morte, e o faz porque sabemos que Ele está à altura de salvar-nos daquele mal mais profundo e mais radical que é o pecado: “’Ora, para que saiba que o Filho do homem tem na terra o poder te perdoar os pecados: Levanta-te’ – disse ele ao paralítico – ‘toma a tua maca e volta para a tua casa’. Levantou-se aquele homem e foi para sua casa” (Mt 9,6-7).

                Mas há uma parte essencial do texto evangélico que se manteve a margem de nossa atenção. Aquele homem “aproximou-se” de Jesus, ajoelhou-se diante d’Ele, gritou-lhe: “Se queres, podes limpar-me.” Eram, talvez, tantos os leprosos escondidos por ali; mas tiveram vergonha de mostrar-se. Esse venceu a vergonha e o medo inveterado de infringir uma lei, ainda que injusta; sabia que todos o apontariam como um pecador, porque a lepra era – dizia-se – sinônimo e consequência de pecado. Por isso, era como se viesse mostrar a todos o seu pecado e fazer uma espécie de confissão pública. “Havia muitos leprosos em Israel, no tempo do profeta Eliseu”, dirá Jesus; “mas nenhum deles foi limpo, senão o sírio Naamã” (Lc 4,27); este foi curado porque o pediu, porque se pôs a caminho e creu no poder do Senhor, porque se humilhou aceitando ir lavar-se no Jordão (cf. II Rs 5,14). O sentido de todos esses gestos é revelado por Jesus na parábola do filho pródigo, quando diz que buscou seu pai, jogou-se-lhe aos pés e gritou: “Meu pai, pequei!” (Lc 15,21).
                Agora entendemos o que nos pede o Evangelho de hoje: que nos reconheçamos pecadores confessemos os nossos pecados, peçamos a Jesus que nos cure e nos purifique. “Purifica-me, Senhor, e serei mais branco que a neve... O meu pecado, eu o reconheço... O que é mal fiz diante de Ti” (citação livre do Sl 50,5ss). São palavras que há quase três mil anos – desde o dia em que o rei Davi cometeu o seu enorme pecado – servem para exprimir esse sentimento genuinamente religioso e humano do homem, que se chama arrependimento.
                Hoje devemos superar um grande obstáculo para repetir tais palavras com a sinceridade de Davi. A cultura moderna tenta dizer-nos que é errado reconhecer-se pecador, criar para si complexos de culpa; que devemos deixar de bater no peito, que aquilo que chamamos pecado – quando se trata de sexo – é apenas tabu, são só condicionamentos e inibições recalcados no passado, na infância; que não devemos buscar por Jesus, mas, quando muito, procurar um psicanalista ou manifestar nossa angústia numa daquelas “cartas à redação” que se lêem nas revistas semanais, principalmente as femininas. Diante do pecado, não mais trememos, mas talvez até mesmo nós, cristãos, fazemos com ele maliciosamente amizade, como se tratasse de uma criancinha com quem brincar. E, de fato, caiu alarmantemente a consciência de penitência, principalmente sacramental.
                Que fazer? Não, por certo, compactuar com a cultura moderna ou com a psicanálise. Quando séria, tem um papel importante a desempenhar na ajuda aos homens de uma época de psicologia distorcida e doente, como é a nossa. Mas, infelizmente, muitas vezes não o é. Devemos, ao invés, redescobrir o autêntico significado bíblico da consciência do pecado e do pedido de perdão. Essas coisas fazem parte da psicologia mais sã do homem; nada mais falso que o super-homem que é incapaz de admitir e aceitar sua menor desrazão. O homem forte, sábio e honesto sabe que realmente é pecador, que erra que tem necessidade de ser perdoado; sabe que é próprio do homem errar. O homem que assim faz, está na verdade, não na mentira. Ninguém nega que nesse campo podem ocorrer neuroses, mas estas se manifestam com características bem diferentes das de uma corajosa autocrítica e da força de pedir perdão, da capacidade de erguer-se para recomeçar. Essas coisas são exatamente o oposto daquilo que se entende por neurose ou comportamento mórbido.
                Diante de Deus jamais estaremos na verdade se não o fizermos com o reconhecimento dos nossos pecados. O soberbo, o fariseu, Ele os mantém afastados, deixa-os no seu pecado: “Eu vim para salvar os pecadores” (aclamação ao Evangelho), isto é, aqueles que se reconhecem como tais.
                Reencontremos, então, a alegria de buscar a Deus para dizer-lhe com humildade: “Pai, pequei! Se queres, podes limpar-me!” Vamos dar sentido àquilo que dizemos no início da missa: “Irmãos, reconheçamos os nossos pecados... Confesso a Deus que pequei muitas vezes” e, na comunhão: “Senhor, eu não sou digno”.
                Nem sempre, porém, basta, por si só, esse reconhecimento. Jesus disse àquele leproso: “Vai, mostra-te ao sacerdote”. Se soubermos escutar bem a Sua voz, pode ser que também a algum de nós Ele diga hoje: “Vai, mostra-te ao sacerdote!” Em palavras pobres e usuais: “Confessa-te! Reconcilia-te com Deus por meio da Igreja!”
Agrada-me passar dessa escuta da Palavra de Cristo à celebração da Eucaristia com um pensamento: ouvimos falar do leproso expulso para fora do acampamento; pois bem, Jesus foi para nós, hoje, esse leproso (cf. Is 53,4; Mt 8,17), coberto de chagas, cumulado de sofrimento; foi tirado do meio dos homens. Tomou sobre Si a nossa lepra, isto é, os nossos pecados, e a curou. Por isso, agora, pode curar todos aqueles que d’Ele se aproximam com fé, tendo-se tornado o médico das almas e dos corpos. A Sua Eucaristia, que ora recebemos, é o remédio de imortalidade que livra da corrupção.
                 

  Raniero Cantalamessa, La Parola e la vita, anno B, Città Nuova (trad.)       

 
Design by Free Wordpress Themes | Bloggerized by Lasantha - Premium Blogger Templates