VII DOMINGO DO TEMPO COMUM – ANO B





“PERDOADOS TE SÃO OS PECADOS”

                Nestes domingos, a liturgia está fazendo percorrer um pequeno itinerário penitencial; a Palavra de Deus insiste, de fato, sobre o tema do pecado, do arrependimento e do perdão. Algumas etapas importantes desse itinerário – na prática todo o percurso que depende de nós -, nós as trilhamos no domingo passado: consiste em reconhecer o próprio pecado, em crer no poder de Deus que cura (“Se queres, podes limpar-me) e em mostrar-se ao sacerdote.
                A Palavra de Deus faz-nos hoje percorrer a segunda parte do caminho, aquela que não depende de nós, mas exclusivamente de Deus. Tudo, nesta liturgia, nos fala da resposta que Deus dá ao pecado do homem, quando esse pecado é reconhecido e confessado.
                Primeira leitura: “Sempre sou eu quem deve apagar tuas faltas, e não mais me lembrar de teus pecados.” (Deus consegue fazer aquilo que os homens acham tão difícil: esquecer-se do mal recebido!)
                Salmo responsorial: “Renova-nos, Senhor, com o teu perdão.”
                Aclamação ao Evangelho: “O Senhor Me enviou para proclamar aos prisioneiros a libertação.”
                Com essas últimas palavras, passamos do regime teológico do Antigo Testamento ao regime cristológico do Novo Testamento, da promessa à realidade. Cristo é, a partir de agora, o agente do perdão de Deus para os homens; a Ele “toda autoridade [poder] [...] foi dada no céu e na terra” (Mt 28,18); em primeiro lugar, o poder de perdoar os pecados.
                Desse poder nos fala, precisamente, o texto evangélico de hoje, do paralítico curado. Trata-se de uma narrativa composta, resultante – parece – da fusão (ocorrida na comunidade primitiva) entre um fato da vida de Jesus – a cura do paralítico – e uma afirmação Sua: a afirmação sobre a remissão dos pecados. Nós lemos toda a página como Palavra de Deus inspirada, sem nos preocuparmos com aquilo que remonta a Jesus e aquilo que é obra da fé da comunidade primitiva; num caso e noutro, é o mesmo Espírito que garante a verdade do que está escrito.
                Que diz, então, Jesus? Que “o Filho do homem tem na terra o poder de perdoar os pecados” (Mt 9,6). Há muitas e grandes novidades nessa frase. A primeira é que o poder de perdoar os pecados se encontra agora “na terra”, ou seja, não é mais um poder exercido às ocultas por Deus no céu, do qual o homem não tem outra certeza – se é que a tem – além da palavra do profeta; agora se trata de algo que soa aos ouvidos do homem com a concretude e com a suavidade de uma voz humana: “Filho [Lucas diz:  meu amigo”], perdoados te são os pecados” (ao paralítico do Evangelho de hoje); “Vai e não tornes a pecar” (à adúltera, em Jo 8,11).
                A segunda novidade é que tal poder de julgar e de perdoar pertence ao Filho do homem, isto é, a Jesus, precisamente “porque é o Filho do homem” (Jo 5,27). Para quem conhece o significado que Jesus dava a esse título Seu, isso significa que Ele pode perdoar todos os pecados porque é o Servo de Javé, que tomou sobre Si todos os pecados (cf. Is 53,4ss) para expiá-los, carregando-os “em seu corpo sobre o madeiro” (I Pd 2,24).
                O título “Filho do homem” exprime, então, neste texto, o “Eu” de Cristo, aquele “Eu” carregado de autoridade, que não se limita a declarar a vontade de Deus, como faziam os profetas, mas a personifica: “(Disse ao paralítico), ‘eu te ordeno: Levanta-te, toma o teu leito e vai para casa. “Não mais: “Diz Deus”, mas “Eu vos digo”. Isso é na verdade um falar como quem tem autoridade (cf. Mt 7,29).
                Mateus conclui a narrativa do mesmo episódio de Marcos dizendo que, naquele dia, “a multidão encheu-se de medo e glorificou a Deus por ter dado tal poder aos homens” (9,8). Por que “aos homens” e não “ao homem” no singular, se é de Jesus Cristo que se trata? Há uma dupla razão: a primeira, que tal poder é exercido “para” os homens (propter nos); a segunda, que tal poder é exercido “através” dos homens. O título “Filho do homem” tem um valor coletivo; quer dizer solidariedade e quer dizer comunidade; remete à verdade da encarnação e do mistério pascal, graças aos qual o Filho de Deus se tornou “primogênito entre uma multidão de irmãos” (Rm 8,29) e “cabeça do corpo da Igreja” (Cl 1,18). Nas palavras ditas por Jesus diante do paralítico delineia-se já o mandato confiado aos apóstolos e à Igreja depois da Páscoa: “Àqueles a quem perdoardes os pecados...” (Jo 20,23).
                Temos aí os elementos para uma catequese completa sobre a remissão dos pecados: Deus, Cristo, a Igreja e, implicitamente, o Espírito Santo. É A ocasião propícia para se tentar uma visão de conjunto, através da Bíblia, deste dogma fundamental da nossa fé: “Creio na remissão dos pecados.”
                O discurso sobre a remissão dos pecados se apóia sobre três certezas da revelação, como sobre outros tantos pilares.
                Primeira certeza: o Deus de Abraão, de Isaac e de Jacó é um Deus misericordioso e grande no perdão. É a verdade que se  proclama em um dos mais altos momentos da revelação bíblica: “Javé, Javé, Deus compassivo e misericordioso, lento para a cólera, rico em bondade e em fidelidade, que conserva sua graça até mil gerações, que perdoa a iniqüidade, a rebeldia e o pecado” (Ex 34,6-7).
                Características desse perdão:
·         É um perdão radical, sem resíduos: “Sou eu quem deve apagar tuas faltas, e não mais me lembrar de teus pecados” (primeira leitura). Comparado, qualquer perdão humano não se pode sequer chamar perdão; o homem deve voltar a perdoar muitas vezes a mesma pessoa pela mesma culpa sinal de que jamais perdoou inteiramente.
·         É um perdão criador, no sentido de que faz nova a criatura, restitui-lhe integralmente as suas possibilidades. Manifesta, assim, de modo absoluto, a onipotência de Deus. Um texto da liturgia diz: “Deus que manifestas a Tua onipotência, sobretudo perdoando e usando de misericórdia.” Talvez mais ainda que a criação, o perdão manifesta a onipotência de Deus, porque ele tira a criatura de um nada ainda menor que o nada da não-existência; tira-a do nada do pecado, porque o pecado é um entregar-se aos braços do nada, ao contra-senso. Davi não erra quando usa para o perdão o mesmo verbo usado no Gênese 1,1 para a criação: “Ó meu Deus, criai em mim um coração puro” (Sl 50,12).
·         É um perdão feito de misericórdia, isto é – ao pé da letra – de uma compaixão do coração: Ele sabe de que barro somos feitos (cf. Sl 102,14). Um perdão motivado, sobretudo pelo amor: Pode uma mãe esquecer seu filho? Pode um pai resignar-se a perder a sua criatura? “Como poderia eu abandonar-te, ó Efraim? [...] Meu coração se revolve dentro de mim, eu me comovo de dó e compaixão” (Os 11,8). Texto desconcertante, esse, que nos põe diante de uma espécie de drama do coração de Deus.
Segunda certeza: Jesus Cristo veio à terra para proclamar e demonstrar esse amor perdoador do Pai: “Enviou-me a [...] curar os corações doloridos” (Is 61,1; cf. Lc 4,18); Eu não vim chamar os justos, mas os pecadores” (Mt 9,13); “Jesus Cristo veio a este mundo para salvar os pecadores, dos quais eu sou o primeiro” (I Tm 1,15).
Jesus concebe a Sua vida e a Sua morte como supremo gesto do perdão de Deus e como remissão universal dos pecados (cf. Mt 26,28). Não uma purificação fim em si mesma, isto é, não só negativa; mas positiva, fecunda, porque feita em vista da vida nova e da Nova Aliança (cf. Lc 22,20), até à comunhão com Deus. Cristo – diz Paulo – lavou a Igreja com o Seu sangue para que pudesse apresentar-se diante d’Ele santa e imaculada e ser digna de receber o Seu abraço de esposo (cf. Ef 5,25ss). Se no Antigo Testamento se falava do perdão como uma criação, no Novo Testamento, à luz do mistério pascal, deve-se falar dele como de uma ressurreição; o homem perdoado é alguém que ressuscitou com Cristo (cf. Cl 3,1). No episódio de hoje, isso se expressa com particular evidência nestas palavras: “’Levanta-te! ’, disse Jesus ao paralítico. E aquele homem se levantou.”
Terceira certeza: esse poder que Cristo tem, de perdoar os pecados enquanto Filho do homem, é por Ele transmitido à Sua Igreja, para que o testemunhe e administre a todos os homens: “Tudo o que ligardes sobre a terra será ligado no céu, e tudo o que desligardes sobre a terra será também desligado no céu” (Mt 18,18). O que foi dessa forma confiado à Igreja não é um poder jurídico abstrato (uma competência judiciária): é o Espírito Santo para a remissão dos pecados! O Evangelista João assim nos transmite a mesma ordem de Jesus relatada por Mateus: “Recebi o Espírito Santo. Àqueles a quem perdoardes os pecados, ser-lhes-ão perdoados; àqueles a quem os retiverdes, ser-lhes-ão retidos” (Jo 20,22-23). A força de perdoar os pecados não está, pois na Igreja, mas no Espírito Santo que anima a Igreja e que se manifesta em caráter de autoridade nos apóstolos e nos seus sucessores. “Toda a Trindade age para a remissão dos pecados e, no entanto, ela é atribuída especificamente ao Espírito Santo [...]. Dado que não ocorre perdão dos pecados senão pelo Espírito Santo, a remissão dos pecados somente pode ocorrer na Igreja, que possui o Espírito Santo” (Santo Agostinho, Ser. [Sermões], 71, 17.20; PL 38,460ss). O Espírito Santo põe em ato a eficácia do Sangue redentor de Cristo; “veicula”, por assim dizer, através dos sacramentos, a graça e a libertação operadas por Cristo. Ele convence o mundo a respeito do pecado (cf. Jo 16,8) e liberta o mundo do pecado.
O passo seguinte – a quarta certeza! – levar-nos-ia a ocupar-nos do sacramento da penitência no qual, concretamente, se administra esse poder de perdoar os pecados que a Igreja recebeu de Cristo. Mas dele falaremos numa outra ocasião (cf. II Domingo da Páscoa, ano C). Hoje, concluamos retornando ao relato evangélico. Nos versos sobre o Servo de Javé se entrelaçam sempre duas prerrogativas:  Ele – diz-se – toma sobre Si os nossos delitos e toma sobre si as nossas dores e os nossos sofrimentos (cf Is 53,4-5), isto é, não só os pecados, mas também as doenças; e a ambas Ele as toma para destruí-las. O Jesus do Evangelho de hoje é Alguém que faz exatamente isso. Diz ao paralítico: “Perdoados te são os pecados”; mas diz-lhe também: “Levanta-te [...] e vai pra casa.” Ele “tira” – ou seja, elimina tomando-os para Si -, quer o pecado, quer a enfermidade.
Este Jesus, Médico da carne e do espírito, vem agora a nós na Eucaristia para ser também para nós uma e outra coisa: Aquele que perdoa e Aquele que cura. Uma e outra coisa exigem de nós muita fé.

                 
               
                Raniero Cantalamessa, La Parola e la vita, anno B, Città Nuova (trad.)       

 
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