A OBJEÇÃO DA DOR
A liturgia da Palavra traçou diante de nossos olhos duas cenas: a de Abraão que sobe à montanha do Senhor para aí sacrificar seu filho Isaac e a de Jesus que sobe à montanha para ser transfigurado. Aparentemente, de comum há apenas o cenário – a montanha – porque, de resto, uma é cena de sacrifício, a outra, de glorificação.
Se, porém, a liturgia reuniu e confrontou essas duas páginas da Bíblia, deve haver um motivo profundo que devemos descobrir. Na realidade, chegamos a descobrir que os motivos profundos são dois: um cristológico e um antropológico. A Palavra de Deus deste domingo se presta, efetivamente, a uma dupla leitura: uma que nos fala de Cristo e outra que nos fala de todos nós. As duas intimamente ligadas.
O evangelista Marcos apresenta do episódio da transfiguração, uma versão no mínimo sóbria e convincente. É impossível fugir à impressão de que por trás do relato exista a lembrança de uma experiência pessoal (a do apóstolo Pedro, de quem Marcos recebe a pregação), tão simples e nítidos são os contornos e tão elevado à perfeição o estado de ânimo de Pedro (não sabia o que dizer).
Discutem os estudiosos como explicar a transfiguração: se num contexto histórico, se como narrativa simbólica, se como experiência interior e visionária. Mas talvez as discussões sejam supérfluas. Como se fosse possível catalogar dentro de nossas categorias habituais (história, símbolo, visão) uma experiência claramente divina e sobrenatural e que tem uma realidade própria infinitamente mais profunda do que aquela chamada “histórica!” A certeza que as testemunhas quiseram passar à Igreja é que naquele dia Jesus lhes apareceu sob uma luz nova, sob a qual entenderam, por revelação expressa do Pai, quem era Jesus. Foi como se a divindade oculta do Verbo encarnado derrubasse as paredes de Sua carne e brilhasse em toda a sua glória; Deus fez brilhar aquele dia, no coração dos discípulos, “o conhecimento do esplendor de Deus, que se reflete na face de Cristo” (II Cor 4,6). Pouco antes, à pergunta: “Quem é Jesus?”, ouvira-se a resposta do povo que dizia: “Um profeta”, e a de Pedro que dizia: “O Messias!” (cf. Mc 8,27ss); agora, escuta-se a resposta do Pai: “Este é o meu Filho muito amado!”
Todavia, tem-se a impressão de que o sentido da transfiguração não se tenha exaurido aqui, isto é, na manifestação da glória de Jesus. O imperativo do Pai: “Ouvi-o”, remete àquilo que Jesus vai dizer; e aquilo que Jesus vai dizer, é que o Messias “deve padecer muito e ser desprezado” (Mc 9,12), que deve morrer e depois ressuscitar de entre os mortos (cf. Tb. Mt 17,12; Mc 9,31).
Duas coisas, então no relato da transfiguração, nos relembram a experiência de Abraão, da primeira leitura: Jesus é o Filho predileto do Pai (como Isaac o era de Abraão). E esse Filho é destinado ao sacrifício! Antes, a realidade se projeta para além da figura, porque Deus – diferentemente de Abraão – não deteve a mão no último momento, “não poupou seu próprio Filho, mas [...] por todos nós o entregou” (Paulo, na segunda leitura de hoje).
A tradição cristã viu em Jesus a realização perfeita do sacrifício de Isaac (Aqeda), perfeita até nos detalhes: Isaac leva sobre os ombros a lenha para o seu holocausto, como Jesus o madeiro de sua cruz; Isaac foi amarrado, como Jesus durante a Sua paixão; a própria montanha de Deus à qual subiu Abraão corresponde, segundo a tradição bíblica, ao local de Jerusalém.
Eis pois o que revela a leitura cristológica da liturgia de hoje: que Cristo chegou à Sua glória (a transfiguração antecipa a ressurreição) através do sofrimento, inaugurando assim Ele mesmo aquele caminho estreito que conduz à vida (cf. Mt 7,14); diz também que esse sacrifício do Filho sanciona uma nova e eterna aliança entre Deus e os homens, como a disponibilidade de Abraão em sacrificar seu filho havia tornado possível a primeira aliança (cf. Gn 22,16ss).
A leitura para nós (ou em contexto existencial) de toda essa aventura toma de início, a forma de uma grande tentação, de um “por quê?” jamais satisfeito. Será que Deus não conhece outro caminho que não seja o do sofrimento? Por que esta “ponte dos suspiros” entre nós e a glória, entre nós e a felicidade? Que espécie de amor foi o de Abraão (e o de Deus), se não soube ou não quis poupar a dor do próprio filho?
Em torno dessa pergunta tomou pé a revolta. Escritores próximos a nós (Dostoievski, com tormento e dúvida; Camus e outros, sem ao menos a dúvida) expressaram, em seus escritos, toda uma onda de rebelião que surge no coração do homem por causa da dor, e, muito especialmente, da dor dos inocentes. “A pergunta: ‘Por que sofro? ’”, escreveu-se, “é a pedra de fundamento do ateísmo”. “Não é bem que eu não aceite Deus”, diz uma personagem de Dostoievski, “mas respeitosamente Lhe devolvo a minha conta” (Os irmãos Karamázovi); isto é, recuso-me a viver no seu mundo. O que é pior que simplesmente negar Deus. É revolta.
Creio que é hora de olhar mais de perto essa objeção da dor, para ver de onde verdadeiramente ela vem. Há no mundo um sofrimento inexplicável – quem o pode negar? Mas não é de estranhar que raramente ele afaste de Deus quem realmente o sofre, mas tão só aquele que sobre a dor mantêm discussões de gabinete, ou seja, filósofos e romancistas? A dor vivida que levou Anne Frank a descobrir Deus e a amá-Lo de modo comovente (veja seu Diário), na mente de seus comentaristas – gente que escreveu após a guerra, no calor das casas reconstruídas – foi desfigurada numa irrefutável prova contra Deus.
A dor dos inocentes (a partir da dor do justo Abel) não tem uma explicação racional, é bem verdade, e, quando finalmente pensamos tê-la encontrado, eis que logo ela desaba ante o aparecimento, de fato, da prova. Mas se a dor não tem uma explicação, tem, porém, uma garantia: Jesus Cristo! Não estamos mais na mesma situação que Jó. A dor tem um sentido, e esse sentido não pode ser simplesmente o castigo pelo pecado, porque Ele, o Filho predileto do Pai, o Homem sem pecado, provou-a até o fundo. Há, portanto, ao menos um que tem o direito de perdoar, um dia, tudo e todos (também quem fez sofrer um inocente) e de reconciliar-nos com o universo de Deus. “É sobre Ele que está fundado o edifício, será a Ele que há de subir o hino: ‘Justo és Tu, Senhor, que nos revelaste os Teus caminhos’” (Dostoievski).
Fez bem a liturgia ao colocar hoje, entre a primeira leitura e o Evangelho, esta palavra de Paulo: “Aquele que não poupou seu próprio Filho, mas que por todos nós o entregou”, porque a chave está exatamente aqui. Em certo sentido, podemos dizer que Deus sofreu a mesma angústia de Abraão e compartilhou por isso a sorte que permitiu às Suas criaturas. O Deus de Jesus não é um Deus impassível.
Que fazer, então, ante a nossa dor e a dos outros? O salmo responsorial fez-nos escutar esta estupenda resposta de um homem como nós: “Conservei a confiança ainda quando podia dizer: ‘Em verdade sou extremamente infeliz’” (Sl 115,1). Acreditar também no momento da dor. É a mais bela prova de confiança que se possa dar a Deus. De Abraão se lê que “esperando contra toda a esperança [...], teve fé [...]. Eis porque sua fé lhe foi contada como justiça” (Rm 4,18.22). Também a nós – concluamos com o Apóstolo – será creditada como justiça “porque cremos naquele que dos mortos ressuscitou Jesus, nosso Senhor” (v. 24), e naquele que um dia O transfigurou no Tabor; isso, se cremos que Deus é bastante bom e poderoso para resgatar toda dor, toda lágrima e fazer-nos chegar também nós – como chegou Jesus -, através da momentânea e ligeira tribulação, a um peso eterno de glória incomensurável (cf. II Cor 4,17).
Raniero Cantalamessa, La Parola e la vita, anno B, Città Nuova (trad.)